Criminosos são rápidos na adoção de tecnologias que os deixam um passo à frente da lei; manter-se fiel a soluções antigas não vai resolver o problema
João Marco Braga da Cunha
Gestor de Portfólios na Hashdex
Texto publicado originalmente no Valor Econômico
Talvez você já tenha notado que, na maioria dos filmes, nas cenas de chantagem, extorsão ou negociação envolvendo reféns, o facínora exige que o pagamento seja feito em notas não marcadas. Na vida real, de fato, há razões para esse tipo de preocupação por parte dos criminosos.
Nos anos 1930, um dos crimes de maior repercussão já visto foi solucionado graças ao rastreamento das notas utilizadas no pagamento do resgate. O imigrante alemão Richard Hauptmann foi condenado à morte pelo rapto e assassinato do filho do aviador pioneiro Charles Lindbergh, três anos após o ocorrido. A pista que levou até ele foi a placa de seu carro anotada em uma das notas utilizadas no pagamento do resgate, reconhecida pelo número de série ao ser depositada por terceiros em uma agência bancária.
Por mais que o caso seja emblemático e notório, o sequestro do bebê Lindbergh talvez não seja uma exemplo da real rastreabilidade do dinheiro em papel. A comoção geral causada pelo crime, que envolveu um dos maiores ídolos mundiais da época, contribuiu para um esforço sem precedentes para uma solução, que incluiu a conferência do número de série das notas semelhantes às utilizadas no pagamento do resgate recebidas pelos bancos na área de investigação.
Mas o conhecimento dos números de série não é sinônimo de sucesso das investigações criminais. Nos início dos anos 1970, quando um passageiro com o nome falso de D. B. Cooper sequestrou um avião e exigiu 200 mil dólares de resgate, as notas de vinte do pagamento foram microfilmadas. Apesar disso, o sequestrador, que saltou de paraquedas em uma fuga espetacular, jamais foi identificado e, até hoje, apenas 5.800 dólares do resgate foram encontrados.
Com os avanços recentes da tecnologia, é provável que a verificação automatizada de números de série facilite o rastreamento em casos como os dois acima. Em alguma medida, as notas de dinheiro não são todas perfeitamente intercambiáveis entre si, o que significa que o dinheiro em papel não é totalmente fungível.
Chegando mais perto no tempo e no espaço, temos um outro crime que também gerou manchetes mundo afora. A Taça Jules Rimet, conquistada pela Seleção Brasileira de futebol com o tricampeonato na Copa do Mundo do México, em 1970, foi roubada da sede da CBF, no Centro do Rio de Janeiro. Os quatro envolvidos foram julgados e condenados, porém esse símbolo nacional nunca foi recuperado. Segundo consta, os 3,8 kg de ouro da taça, que hoje valeriam cerca 1,3 milhão de reais, foram derretidos. Se já é difícil rastrear notas com determinados números de série, o ouro é praticamente impossível. Após derretido, um quinhão ouro é virtualmente indistinguível de outro de mesma qualidade. Nesse sentido, o ouro é mais fungível que o papel moeda.
No mundo dos criptoativos, porém, o padrão é outro. Os principais criptoativos mantém um registro público de todas as movimentações entre as carteiras. Portanto, é possível saber se um determinado bitcoin, por exemplo, é fruto de alguma operação ilícita.
Um caso desses ocorreu recentemente. Em julho, um site de monitoramento das transferencia da rede do bitcoin emitiu um alerta sobre a movimentação de 77 mil bitcoins que foram roubados da exchange Bitfinex há quase quatro anos. É possível que esses bitcoins continuem circulando no submundo, mas não serão aceitos nos principais mercados. Na prática, são como notas de real manchadas de tinta rosa. E, por mais que os criminosos criem sofisticados esquemas para esconder sua origem, o fato de existir um registro público sempre permite o rastreamento.
Por esse ponto de vista, o bitcoin e os principais criptoativos não são totalmente fungíveis. Outra evidência disso é a existência de um mercado paralelo de bitcoins recém-minerados. Há relatos de que esses bitcoins “virgens” chegam a ser negociados com ágio de 10% a 20% em relação ao preço de mercado normal, em tese, pela maior garantia em relação à sua procedência.
Provavelmente, o caso mais importante solucionado com ajuda do fluxo de bitcoins foi o da Silk Road, um milionário mercado de produtos ilegais operado na chamada darknet. Os investigadores conseguiram chegar a Ross William Ulbricht, conhecido como “Dread Pirate Roberts”, que foi condenado à prisão perpétua.
Outros criptoativos, porém, foram projetados para serem totalmente fungíveis e manterem a opacidade das movimentações. Evidentemente, esses ativos têm atraído atenção de criminosos e, não por outra razão, não são negociados na principais exchanges reguladas e nem suportados pelos melhores custodiantes. Um dos mais conhecidos desses ativos é o Monero. Inclusive, essa foi a forma de pagamento exigida pelos hackers que bloquearam o sistema da companhia elétrica Light há alguns meses. Atualmente, a grande maioria dos criptoativos não possui esses mecanismos de ocultação das movimentações.
Criminosos sempre foram rápidos na adoção de tecnologias que pudessem deixá-los um passo à frente dos agentes da lei. Os automóveis foram mal vistos nos primeiros anos por serem muito associados aos assaltos a bancos. Em alguns casos, porém, manter-se fiel aos antigos métodos pode ajudar os criminosos da vida real a não acabarem atrás das grades, como costuma acontecer nos filmes.