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DeFi: Reinventando o Mercado Financeiro

Artigos

João Marco Braga da Cunha

Gestor de Portfólios na Hashdex

Texto publicado originalmente na Revista Exame

 

O livro “Memórias de um Operador da Bolsa”  (em inglês “Reminiscences of a Stock Operator") conta a incrível história do especulador Jesse Livermore e suas incontáveis quebras e voltas por cima. A história percorre o final do século XIX até meados do século XX. Nesse período, os mercados eram tecnologicamente muito diferentes do que temos hoje. Por exemplo, as informações eram recebidas e enviadas por telégrafo. A despeito disso, a leitura do livro revela que pouco mudou na forma como os mercados estão estruturados. O papel de cada tipo de agente continua sendo, grosso modo, o mesmo do século retrasado.

 

Nos últimos anos, porém, vem se desenvolvendo uma nova tecnologia com potencial de redefinir os alicerces dos mercados financeiros. O DeFi, da sigla em inglês para finanças descentralizadas, é um segmento dentro do espaço de criptoativos de protocolos criados para realizar operações típicas do mercado financeiro sem a necessidade de agentes intermediários. Mesmo sendo uma proposta ambiciosa, o recente crescimento desse novo mercado faz parecer plausível.

 

O cerne da tecnologia que pode obsolescer os tradicionais intermediários do sistema financeiro são os chamados smart contracts. Essa versão digital dos contratos possui uma característica fundamental para viabilizar a descentralização ou a desintermediação: a autoexecutabilidade. Exemplificando, suponhamos que haverá um jogo de futebol entre dois times de países diferentes e que dois torcedores, um de cada time, que não se conhecem, decidem, cada qual, apostar na vitória do seu time. Uma solução seria, simplesmente, confiar que o rival irá honrar a sua aposta em caso de derrota, o que é difícil dado que os dois não se conhecem. Outra possibilidade seria recorrer a uma terceira parte na qual ambos confiem, como uma casa de apostas, para intermediar tal transação, o que lhes custaria uma parcela do valor envolvido. Uma terceira solução, que não dependeria de confiança mútua ou do envolvimento de terceiros, seria ambos os apostadores depositarem o valor apostado em um  smart contract programado para, a depender do resultado do jogo, fazer o pagamento a um ou a outro conforme um conjunto de regras estabelecido. Ou seja, o contrato que rege a aposta é executado automaticamente, sem nenhuma interferência de partes externas.

 

A mais importante blockchain a suportar smart contracts é a do Ethereum, mas há diversas outras alternativas, cada qual com suas idiossincrasias. Essas redes provém o que seria equivalente à camada de liquidações do sistema financeiro, que pode ser feita tanto na moeda nativa (no caso da rede Ethereum, o Ether) ou nos chamados tokens, que são outros ativos digitais constituídos nessa rede, podendo incluir as chamadas stablecoins (criptoativos lastreados em ativos tradicionais). Essa estrutura constitui a base para os diversos protocolos de DeFi hoje existentes.

 

A partir disso, diversas funcionalidades análogas ao mercado financeiro podem ser desenvolvidas. É o caso de protocolos como o MakerDAO, Compound e AAVE, que descentralizam o mercado creditício. Consideremos, por exemplo, se alguém possui Ether (ou outro token) para carregar para o longo prazo, mas precisa cobrir uma necessidade financeira de curto prazo em dólares. Ele pode utilizar um desses protocolos para, deixando o seus tokens em margem, sob a custódia de um smart contract, e tomando uma stablecoin emprestada (que pode ser convertida em dólares junto ao emissor ou em exchanges). O smart contract é desenhado de tal forma que, quando o tomador deposita de volta o valor do empréstimo acrescido dos juros, ele recebe de volta os tokens depositados. Além disso, o smart contract monitora o valor em margem diante da oscilação do preço do token e, de acordo com um conjunto de regras, pode vender os ativos para saldar a dívida com os credores. É importante notar que os credores e devedores não se conhecem e nem possuem uma contraparte central. Os protocolos juntam as pontas.

 

De maneira análoga, há protocolos para diversas outras funções: exchange, como UniSwap, Curve Finance e Balancer, derivativos como Synthetix e seguros como a Nexus Mutual. Até mesmo a administração fiduciária está na mira dos desenvolvedores, como no caso da Enzyme Finance. Todos compartilham a filosofia de substituir a confiança, mútua ou em uma parte central, por um algoritmo, de tal forma que todas as partes envolvidas se beneficiam quando comparado ao que teriam no mercado financeiro tradicional.

 

Evidentemente, há novos riscos envolvidos nesse mercado nascente. Os protocolos podem apresentar fragilidades que podem ser exploradas por hackers, por exemplo. Tudo ainda é muito incipiente e, de certa forma, até experimental. Além disso, há questões que precisam ser esclarecidas no que tange a como esse segmento adere à regulação hoje existente para criptoativos. A despeito disso, a adoção do DeFi cresce em números impressionantes. É bem verdade que os valores hoje transacionados nessas tecnologias ainda são uma fração ínfima do observado no mercado usual, mas não é descabido imaginar cenários futuros nos quais os agentes financeiros são impelidos a se reinventar e aderir a  esse novo paradigma tecnológico. 

 

De volta à história de Jesse Livermore, pode-se dizer que ele cresceu aproveitando as brechas existentes no mercado de sua época. Nesse sentido, os protocolos de DeFI estão seguindo o mesmo caminho. O especulador, entretanto, teve um trágico fim, suicidando-se. O segmento de DeFi, por sua vez, pode vir a ser a tragédia dos grandes agentes do mercado financeiro como conhecemos, caso eles não se reinventem.

 

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