Nos últimos dias, o mundo cripto e o mercado financeiro tradicional vinham acompanhando com grande expectativa a possibilidade de ser aprovado pela SEC¹ o primeiro ETF de Bitcoin nos EUA. Depois de quase uma década de infrutíferas tentativas por parte do setor, esse marco finalmente tornou-se realidade.
Para os investidores brasileiros, a possibilidade de investir no setor por meio de instrumentos regulados não é novidade. Em abril deste ano foi lançado na B3 o HASH11, o primeiro ETF de cripto do Brasil e do mundo. O ETF segue o NCI, índice desenvolvido pela Hashdex em parceria com a Nasdaq, que busca refletir os retornos do mercado de criptoativos de forma segura e diversificada. Em agosto, o BITH11 e o ETHE11 também foram listados na Bolsa, dando acesso regulado ao Bitcoin e ao Ethereum, respectivamente.
Mais recentemente, novos ETFs foram aprovados no Canadá, somando-se aos ETPs disponíveis na Europa. Enquanto investidores dessas diversas nacionalidades passaram a ter acesso de maneira simples a essa nova classe de ativos, os únicos instrumentos disponíveis nos EUA eram fundos comuns ou derivativos negociados na CME, a Bolsa Mercantil de Chicago. Por algumas razões, esses instrumentos estavam longe de ser a forma ideal de exposição a criptoativos.
Os fundos, por serem destinados apenas a accredited investors, investidores com patrimônio superior a US$1 milhão, trazem naturalmente uma grande restrição de acesso, excluindo a maior parte da população americana. A exceção é a negociação no mercado secundário de produtos como o Grayscale Bitcoin Trust - acessíveis ao varejo, mas carregando relevantes ágios ou deságios. Já os derivativos trazem complexidades operacionais relevantes, como a necessidade de depósitos de garantia e o monitoramento das datas de vencimento, tornando o produto mais adequado a investidores institucionais.
Com o resto do mundo tomando a liderança, por que o mercado americano -- usualmente protagonista no desenvolvimento e adoção de novas tecnologias -- vinha sendo resistente à aceitação de cripto como uma nova classe de ativos?
A explicação se dá por conta de um conceito fundamental: a busca pela proteção aos investidores. O Bitcoin era -- e por muitos ainda é -- considerado um ativo altamente especulativo. Rodeado de controvérsias, de lavagem de dinheiro a pirâmides financeiras, o regulador americano sempre foi extremamente relutante em permitir seu acesso a um público mais amplo. Apesar de discordarmos, esse vinha sendo o posicionamento da SEC até aqui.
O primeiro pedido para listagem de um ETF de Bitcoin nos EUA aconteceu ainda em 2013, requisitado pelos irmãos Tyler e Cameron Winklevoss, fundadores da corretora Gemini, que se envolveram com o setor de cripto ainda em seus estágios iniciais. De lá para cá, diversos novos pedidos foram rejeitados ou recorrentemente adiados.
Um dos principais receios da SEC era em relação a atributos como a descoberta de preço e a manipulação de mercado. Por ser um ativo amplamente negociado em corretoras não reguladas, o órgão regulador deixa de ter a capacidade de mapear e monitorar todos os movimentos deste mercado. Com isso, torna-se naturalmente mais suscetível a manipulações de preço. De fato, não é raro observarmos movimentações significativas nas cotações na sequência de manifestações de figuras públicas. Sem instrumentos para coibir esse tipo de atitude, a postura da SEC vinha sendo a de maior precaução, não autorizando a criação de ETFs ou fundos de varejo que dessem acesso direto ao Bitcoin ou qualquer outro criptoativo.
É por esse motivo que, até esse momento, uma das únicas formas de ter exposição a cripto era por meio de derivativos negociados na CME -- essa sim regulada e com políticas rígidas de KYC²/AML. Nesse ambiente controlado, a SEC é capaz de identificar exatamente quem está movendo os mercados.
Os derivativos -- como o próprio nome já indica -- são instrumentos financeiros cujo valor é derivado de uma entidade subjacente. Essa entidade pode ser um ativo, um índice ou uma taxa de juros, dentre outros. São utilizados para diversos fins: proteção contra movimentos de preço, alavancagem visando maiores retornos ou como uma maneira de acesso a ativos que, de outra forma, seriam de difícil negociação.
No caso do Bitcoin, o derivativo mais relevante negociado na CME é o contrato financeiro futuro. Um contrato futuro consiste essencialmente no compromisso de comprar ou vender um ativo por um determinado preço em uma data posterior. Nesse caso, ao invés de o ativo trocar efetivamente de mãos, o que ocorre é apenas a liquidação financeira na data de vencimento. Exemplo: se um investidor entrar em um contrato futuro para comprar Bitcoin por $40 mil no prazo de um mês, e na data de vencimento o valor do ativo for de $45 mil, o comprador recebe $5 mil em dinheiro, que é a diferença entre o valor acordado e o valor efetivo naquela data. Se o preço estiver abaixo, ele paga a diferença.
À primeira vista, essa parece ser uma forma eficiente de ganhar exposição ao mercado sem ter os ativos efetivamente em custódia. Na prática, há um problema importante. Por ser um “derivado” do mercado principal, os derivativos não necessariamente representam de forma fiel os movimentos de preço dos ativos subjacentes. De fato, são frequentes as divergências entre o mercado spot -- isto é, o preço real de negociação do ativo propriamente dito -- e o mercado de derivativos. Em momentos de otimismo os contratos futuros tendem a negociar com prêmios, e o oposto ocorre em cenários de pessimismo.
Uma das principais razões para isso é que o volume negociado na CME é significativamente menor do que o do mercado spot. Enquanto na Bolsa de Chicago o volume diário de futuros de BTC ficou, na média, em torno de $2 bilhões no último mês, no mercado spot esse número passou dos $30 bilhões. Essa restrição de liquidez é, em boa parte, auto-imposta pela bolsa, como forma de proteger o mercado de movimentações excessivamente grandes. Ou seja, uma vez que há poucas alternativas que não os contratos futuros para que o investidor americano ganhe exposição ao Bitcoin, ele é obrigado a executar suas ordens em um pool de liquidez mais de 15 vezes menor do que o mercado total.
O resultado é exatamente o que se poderia esperar: spreads significativos entre o preço negociado nos contratos futuros e no preço spot. Nos últimos dias, com a euforia resultante da expectativa de aprovação do ETF nos EUA, essa divergência de preço chegou a 15% a.a.