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Lastros: os monetários e os familiares

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Nosso gestor de Portfólios, João Marco Braga da Cunha escreveu um artigo, cuja versão resumida foi publicada pelo jornal O Globo no qual é explicada sua visão acerca da questão do lastro das moedas, do propósito dos criptoativos e, também, da grande emissão de moeda promovida pelos Bancos Centrais em resposta à pandemia.

Assim como meus pais, sou economista e, como era de se esperar, economia sempre foi assunto de conversas (e discussões) com os dois. Dentre os vários subtemas abordados, um, em particular, apareceu reiteradas vezes em minhas incontáveis (e saudosas) resenhas com meu pai noite adentro. "Qual é o lastro do dólar?", indagava ele inconformado. Para ele, formado não tantos anos após o fim do padrão ouro, o aumento das emissões de moeda americana pareciam uma pirâmide ou coisa parecida. Especialmente no fim de 2008, quando, num intervalo de seis meses, o volume total de dólares emitidos praticamente dobrou. "O que me garante que isso aqui vale alguma coisa?", seguia, com seu dólar da sorte na mão. Na sua visão, em algum momento, o mundo acordaria do transe abarrotado de papel verde sem valor.

Para mim, que cresci num mundo onde o dólar sempre foi a referência final de valor e o padrão ouro parecia algo quase que medieval, a explicação era simples. "Existe uma economia aberta e extremamente diversificada que produz um quarto dos bens e serviços do planeta na qual esse seu papel é aceito por força de lei. O valor dessa sua nota está em você poder levá-la até lá e trocar por qualquer coisa que você imaginar", rebatia eu. E por aí o papo seguia.

O lastro de uma embarcação é algo pesado colocado no fundo da mesma para reduzir sua oscilação ao navegar. Analogamente, o lastro de uma moeda é um estabilizador do seu valor. Quando o emissor de uma moeda pratica uma política crível de conversão da mesma em determinada quantidade de ouro, a ausência de arbitragem faz com que o valor dessa moeda caminhe pari passu ao da commodity. Algo semelhante, porém com o dólar como referência, foi utilizado para livrar o Brasil da inflação medonha que nos assolou nos anos 80 e início dos 90.

Quando a economia é o lastro de uma moeda, o mecanismo de ajuste se dá através dos termos de troca internacionais. Por exemplo, um choque que reduza o valor do dólar perante as outras moedas faz com que os diversos produtos e serviços produzidos nos EUA se tornem relativamente mais baratos tanto lá quanto no resto do mundo. Consequentemente, mais agentes demandarão dólares para comprar esses bens e serviços, elevando o valor da moeda e, portanto, minimizando o impacto do choque inicial. Quanto maior, mais aberta e mais diversificada a economia for, mais firme será o lastro que ela proporciona. É interessante notar como, por exemplo, a moeda da Austrália, uma economia média muito concentrada na mineração de metais, flutua de acordo com os preços desses metais no mercado global. Além disso, uma boa condução de políticas monetária e fiscal também tem um relevante papel na estabilização do valor da moeda local, já que a alta inflação ou alto risco de insolvência refletem-se em desvalorização e volatilidade da mesma.

Recentemente, por coincidência, justo durante uma nova onda de forte emissão de dólares, a lembrança das minhas conversas com meu pai tem sido estimulada pelos frequentes questionamentos a respeito da falta de lastro dos criptoativos. Pois bem, a lógica é exatamente a mesma das economias nacionais. Os criptoativos são as moedas das redes blockchain, uma tecnologia nova e que ainda não atingiu nem uma fração do seu potencial. De fato, no atual estágio, o lastro representado pela chamada criptoeconomia assemelha-se a uma carga de algodão no porão de um navio. Não é à toa que o valor desses ativos tem altíssima volatilidade. Porém, à medida que as aplicações dessa tecnologia maturarem e atingirem um público amplo, os mesmo mecanismos de oferta e demanda que estabilizam as moedas nacionais se farão notar nessas moedas virtuais, forçando algum nível de paridade de preço entre os serviços tradicionais e os equivalentes oferecidos em blockchains. Isso irá limitar significativamente a variação de preços dos criptoativos. É provável que cada blockchain vire uma espécie de Austrália, com o valor de sua moeda acompanhando, aproximadamente, o preço de mercado do seu principal produto. Além disso, a grande maioria dos criptos já nasce com um política monetária austera programada no seu código, o que dará ainda mais confiança na preservação de seu valor no longo prazo.

De volta às resenhas com meu pai, fato é que nunca consegui convencê-lo totalmente. Por mais que os meus argumentos fizessem sentido, seus instintos o alertavam que havia algo de errado naquela gigantesca impressão de papel verde. Pelo menos em parte, ele estava certo. Hoje, anos mais tarde, o fato desse experimento monetário radical não ter causado uma brutal desvalorização do dólar é uma grande questão em aberto, que desafia alguns dos alicerces da Economia como a conhecemos. O que posso dizer? Para mim, ser filho de dois bons economistas é um lastro e tanto.

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