Hero's Image

Refutando o Modelo Estoque-por-Fluxo do Bitcoin

Artigos

Em artigo exclusivo para o Cointelegraph João Marco Braga da Cunha, Gestor de Portfólios da Hashdex aborda o modelo stock-to-flow.

Nossa história começa em março de 2019, quando o (agora conhecido) blogueiro PlanB postou um artigo chamado "Modeling Bitcoin's Value with Scarcity”" (Modelando o Valor do Bitcoin com Escassez, numa tradução livre).

Nessa peça, o autor alega que algumas commodities têm seu market cap (valor de mercado do estoque total) determinado pelo quociente entre o seu estoque total e o fluxo de novas unidades disponíveis.

Ele aplicou esse modelo ao Bitcoin e concluiu que o último halving, evento que reduziu pela metade a taxa de criação de novos unidades, empurrará o preço do Bitcoin para além dos cinquenta mil dólares.

Não é surpreendente que a popularidade de modelo estoque-por-fluxo (S2F, do inglês stock-to-flow) disparou entre entusiastas do Bitcoin.

Por baixo de todos os ornamentos de fractais e leis de potência, a relação entre o market cap e o S2F foi derivada a partir de uma regressão linear simples no logaritmo natural de ambas as variáveis.

É aqui que o primeiro problema emerge. O market cap é dado pelo estoque multiplicado pelo preço. Então, temos:

 

Stock-flow-bitcoin

 

Claramente, o estoque aparece em ambos os lados da equação. Isso arruína a estimação e induz ao erro na significância estatística.

Bitcoin

De fato, mesmo substituindo o preço do Bitcoin por uma variável completamente desconexa, como o número de mortes em Istambul ou a extensão do gelo nas calotas polares, encontraríamos números similares de significância estatística. A conclusão direta é que esses números não significam absolutamente nada.

Outros autores escreveram revisões do artigo original. Alguns deles removeram o estoque do lado esquerdo da equação, procuraram por uma relação direta entre o preço do Bitcoin e seu S2F e encontraram. Então, um novo problema apareceu.

Ambas as variáveis são não-estacionárias, o que torna o estimador de mínimos quadrados propenso a encontrar falsas relações entre elas. Esse questão foi apontada por Marcel Burger, da BurgerCrypto.com.

Não obstante, em alguns casos muito especiais, conhecidos como cointegração, variáveis não-estacionárias podem ser tratadas normalmente.

Um blogueiro que usa o nome de Nick rodou alguns testes e concluiu que haveria cointegração entre as duas variáveis em questão, reabilitando, parcialmente, o modelo e as conclusões de PlanB.

Ocorre que a cointegração entre duas séries temporais é um fenômeno extremamente raro.

Stock-to-Flow

Tão raro a ponto de despertar ceticismo a respeito de resultados estatísticos indicando-o na ausência de uma fundamentação teórica sólida. Nesses casos, vale a pena escrutinar os testes. Assim fizemos para o modelo S2F.

Simulações são um bom ponto de partida. Elas podem dar uma boa intuição do onde estamos entrando. Geramos um grande número de séries de preço aleatórios, sorteando retornos de uma distribuição normal com a mesma média e variância encontrada nos retornos diários do Bitcoin.

Também construímos uma série ideal de S2F, com os fluxos dados pelo número esperado de blocos minerados diariamente (144), multiplicado pela taxa de remuneração por bloco vigente em cada dia, de tal forma que o estoque total coincidisse com o verdadeiro valor no último dia da amostra.

Em seguida, aplicamos o Teste de Johansen (o mesmo utilizado por Nick e Marcel) para verificar se as variáveis simuladas são cointegradas. Dado que nós já sabíamos que elas não eram, estávamos, na verdade, utilizando-as para testar o próprio teste de Johansen.

Seria esperado que a hipótese nula de ausência de cointegração ao nível de significância de 1% fosse rejeitada em 100 de 10,000 simulações. Na realidade, houve mais de 6.000 rejeições.

S&P 500

Bizarramente, se seguíssemos o mesmo procedimento usando os preços das 20 maiores empresas do S&P 500 ao invés de preços aleatórios, descobriremos que 6 delas “são cointegradas” com o S2F do Bitcoin.

Certamente, há uma falha no teste e os resultados obtidos não devem ser considerados.

O problema é que a maioria dos preços de ativos possuem duas fontes de não-estacionariedade.

Eles têm um carrego associada ao retorno de longo prazo e os retornos cumulativos de curto prazo. O primeiro comporta-se como uma tendência linear na série de preços em logaritmo e portanto, é necessária a utilização da versão do Teste de Johansen que leva esse efeito em consideração.

Quando fizemos isso, a taxa de rejeições ficou um pouco abaixo de 1% para as séries simuladas e nenhuma das 20 séries de preços de ações do S&P 500 teve resultados falsos, considerando o nível de significância de 1% em ambos os casos. Isso constitui uma forte evidência a favor do uso dessa versão do teste nesse contexto.

No fim das contas, ela não rejeita a hipótese nula de ausência de cointegração entre o preço do Bitcoin e o S2F, tanto o real quanto o ideal, mesmo ao nível de significância de 10%. Em outras palavras, quando a versão apropriada do teste estatístico é aplicada, a pistas de que o S2F poderia influenciar o preço do Bitcoin desaparecem completamente.

Mark Twain popularizou a frase "existem três tipos de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas". É engraçado, mas bastante injusto. A evidência baseada em dados está longe de ser infalível e, às vezes, a modelagem estatística imprecisa pode levar a conclusões falsas.

Por outro lado, dentro do ferramental estatístico, pode-se encontrar as técnicas para detectar e corrigir esse tipo de problema. Obviamente, o conhecimento profundo sobre os dados e o suporte de teorias bem estabelecidas podem reduzir as chances de seguir na direção errada.

Doses extras de ambos são necessárias quando se trata de previsão de preços de ativos. Possivelmente, modelos rentáveis de previsão de preços são ainda mais escassos do que as séries cointegradas.

Logo B3
Logo Anbima